A triste sina da ferrovia portuguesa

Décadas de desinvestimento no que é um papel exclusivo do Estado – a rede ferroviária – e de pensos rápidos no operador público – a CP – resultam hoje numa rede ferroviária ao mesmo tempo pouco competitiva e com uma operação em rotura.

Podemos discutir o que é uma rotura e se o actual estado é isso mesmo, mas a semântica apenas interessa a quem pretende desfocar os problemas existentes para evitar responsabilidades. Certo é que nunca antes o país se tinha defrontado com vagas de supressões como a que dura há meses na rede ferroviária, com particular impacto nos serviços regionais das linhas mais esquecidas da nossa rede (e no Algarve….!) e impactando o nível de serviço oferecido até nos serviços de topo de gama como os Alfa Pendular e Intercidades, onde não raras vezes são trocadas as composições habituais (aptas a 200-220 km/h e conforto a acompanhar a gama) por comboios regionais, sem conforto e aptos apenas a 120 km/h. Se em Évora é quotidiano, nos serviços Alfa não o é menos e o transbordo em Campanhã para serviços que deviam ser directos de Lisboa a Braga ou Guimarães é hoje uma realidade.
Os coros dos partidos do regime não se cansam de bradar sobre responsabilidades. É óbvio que o actual governo não é responsável pela falta de competitividade da rede – os traçados são antigos e desadequados, a ferrovia tem a mais baixa densidade em Portugal por comparação com os seus parceiros europeus, entre outros. Isso exige muitos anos para reparar, porque requer muito investimento público, e o que se pode aqui dizer é que este Governo continua a ajudar à festa – retirou o lombo ao Ferrovias 2020 e manteve apenas intervenções pouco ambiciosas, à semelhança do que foi sendo feito nas últimas décadas (a exceção é a nova linha Évora – Elvas, planeada desde os anos … 60).
Mas na operação não pode haver complacência. É triste assistir-se ao passa culpas perante a óbvia constatação de que o governo é incapaz até de gerir num horizonte de curto prazo. Se recebeu a CP no limite dos seus recursos, como é possível que só ao fim de três anos, perante o clamor da opinião pública, abra concursos raquíticos para repor pessoal na EMEF, para conseguir reparar comboios? Como é possível que, se em 2016 a própria CP alertava para a necessidade de expandir operações, ao fim de três anos este Governo tenha cancelado planos de curto prazo recorrendo a aluguer de comboios e tenha até imposto, directa e indirectamente, redução de meios? O que esperavam que acontecesse a uma empresa que dizem ter recebido numa situação limite se a seguir cortam meios?
Infelizmente levo 15 anos a ouvir políticos apresentarem o seu amor pela ferrovia. Adormecem-nos realçando as vantagens ambientais e energéticas, a eficiência económica e, claro, os muitos casos de estudo dos nossos parceiros europeus – o nosso continente aliás investe hoje em dia praticamente tanto em ferrovia como no tempo da revolução industrial. Na altura de atribuir verbas, o sector fica sempre para o fim. No tempo das vacas gordas, nos anos 90, a CP poucos comboios comprou e optou antes por atamancar uma série de material circulante dos anos 50 e 60, para durarem mais 15 anos. Nas infraestruturas, com a honrosa excepção da renovação Pinhal Novo – Torre Vã, renovaram-se imensas linhas sem se mexer em nada de crítico: proximidade de estações às populações e centros económicos, redução das muitas rampas que existem nas nossas linhas (com grandes impactos na produtividade do transporte de mercadorias) ou aumento das velocidades (nos eixos principais portugueses praticam-se velocidades médias que os nossos parceiros europeus tinham nos anos 60 do século passado).
Está quase tudo por fazer e à medida que os anos passam (incluindo a actual legislatura), mais fica por fazer e mais longe ficamos de ter um sistema ferroviário à altura da civilização a que aspiramos, o que é particularmente doloroso para um país afastado do centro da Europa e onde os impactos da localização periférica se agravam perante soluções logísticas pouco eficientes. No domínio da coesão social e territorial, Portugal tem de decidir se quer capacitar territórios interiores ou não, assumindo em caso afirmativo que tem muito para fazer e para construir. No domínio puramente económico, é impossível ignorar empresários e confederações que vão redobrando e intensificando alertas para os impactos da falta de desenvolvimento do meio ferroviário.
Meus amigos, não há dúvidas que no imediato Portugal tem de gastar e gastar muito com a ferrovia. Se realmente a quer recuperar, não há alternativa. Tipicamente detesto soluções que impliquem atirar dinheiro para cima dos problemas, mas no caso presente é por aí que se terá mesmo de começar.
É preciso definir uma estratégia antes de pedir projectos para 2030. Que país queremos ser? Queremos ligar as nossas capitais de distrito todas por comboio? E em caso afirmativo, queremos que todas estejam no máximo a 2h30 de Lisboa ou do Porto? Queremos ligar todas as regiões aos portos marítimos? Queremos reforçar os nossos laços no mercado ibérico? Tudo isto são o tipo de perguntas cujas respostas devem dar as orientações para só depois se desenvolverem os projectos. É tempo de acabar com a lógica pontual e abordarmos a rede como um sistema – estratégia definida, será hora de projectar, orçamentar, priorizar e fasear a execução.
Na operação no imediato tem mesmo que se capacitar a CP. Autorizar todas as manutenções que estão pendentes e os alugueres que possam permitir reduzir os riscos de quem opera uma frota demasiado antiga e ao mesmo tempo que possa desde já permitir incorporar o aumento da procura, especialmente crítica em sectores como o Longo Curso, bastante rentável, e onde a CP perde dinheiro de forma dramática por falta de capacidade de resposta.
Independentemente de propostas programáticas para o arranjo institucional do sector e sua operação, Portugal não tem tempo a perder – tem de recuperar a CP. Tem de se assegurar autonomia e responsabilidade à gestão da CP (hoje em dia completamente amputada), meios para a operação actual e contratualizar explicitamente o serviço público – que linhas, que serviços, que frequências, que tipologia de material circulante, que indicadores de qualidade. Não é possível continuar a encarar uma empresa pública como um mero repositório de serviços avulsos, onde nunca se consegue definir o que a CP opera por interesse (até porque o efeito de rede, nos ramais de reduzido tráfego, induz muitos proveitos nas linhas principais) e aquilo que é o Estado que exige que se faça, sem por isso pagar. O Estado tem de dizer claramente o que é o serviço público que quer operar e pagar por isso – só assim nós, cidadãos, poderemos também escrutinar as opções políticas.
E vai ter de investir em material circulante. Em muito. A última compra foi em 1999 (automotoras do Porto, colocadas em serviço entre 2002 e 2004). Cerca de metade da frota da CP (que totaliza cerca de 300 unidades motoras e 100 carruagens de serviço Intercidades) carece de substituição a curto prazo. A 15 anos, provavelmente falamos de 80%. A factura de anos de desinvestimento está aí, e o país ou encerra a rede ferroviária ou tem de a pagar – é uma dívida não contabilizada na dívida pública mas que existe.
Fundamental é também a assumpção da dívida da CP pelo Estado, ao mesmo tempo que defina a contratação do serviço público e dê autonomia à gestão, responsabilizando tal como em qualquer empresa a sua administração por cumprimento de objectivos e não tolerando a existência de prejuízos sistemáticos que voltem a gerar um novo bolo de dívida. Facto é que a dívida cá está, custa cerca de 100M€/ano (a CP tem cerca de 300M€ de proveitos anuais), e não pode continuar às costas da CP. Os políticos têm de assumir o que fizeram com este seu quintal.
Quando tudo estiver em ordem, será possível olhar também para o lado institucional da ferrovia e para considerações económicas e de concorrência. Em 2020 o mercado interno abre-se à concorrência, e poderá ser possível por a concurso também as obrigações de serviço público, cujos moldes podem ser muito variáveis (de curta duração com material circulante detido pelo Estado, de longa duração com material circulante detido pela empresa, etc.). Mas não adianta sequer irmos por aí num país onde a operação ferroviária está hoje em mínimos de sempre – e a todos os níveis.
Não pode o governo negar a existência de problemas que decorrem da sua obscura e irresponsável execução orçamental, que mistura cativações já corriqueiras com outras tácticas para não executar investimento – e em termos de manutenção ferroviária, grande parte das tarefas são classificadas como investimento. Se o Governo atabalhoadamente diz que recebeu uma empresa em mau estado e com oficinas com menos pessoal do que anos antes, como podem hoje as oficinas terem ainda menos gente do que em 2016? É preciso por um ponto final na desresponsabilização e na total ausência de propostas governamentais para o futuro. Ninguém poderá contestar, sugerir ou até elogiar opções deste governo uma vez que elas não são públicas. Pretende privatizar a CP à má fila, degradando o serviço propositadamente? Pretende manter pública mas em agonia? Quer fazer da CP uma grande operadora ibérica tendo em vista a abertura dos mercados em 2020?
O que quer, afinal, o Governo?
Para o resgate do sistema ferroviário é fundamental agir agora e em força. Governação é o exercício dilemático de opções conflituantes. O Governo não pode continuar a fingir que, com recursos sempre limitados, vai acorrer a tudo. Tem deixado a ferrovia na cauda das suas prioridades sem que o assuma, impedindo o transparente escrutínio da sua acção e inclusivamente cerceando as possibilidades da população optar entre projectos claros em sede eleitoral. Para já, a opção destes três anos de governo tem sido sempre comprar as linhas vermelhas de Bloco e PCP em nome do projecto de poder do primeiro-ministro. Os resultados estão à vista e ainda vão piorar.

— Opinião liberal de João Cunha, membro da IL

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