Reformulação das carreiras das IES

Reformulação das carreiras das IES

A. Objetivos

  1. Dar liberdade às Instituições de Ensino Superior (IES) para definir os seus regulamentos de carreiras, dentro de um enquadramento geral nacional.
  2. Promover a concorrência entre IES na atração de talento.
  3. Dividir explicitamente a carreira docente da carreira de investigação, com respetiva avaliação diferenciada.
  4. Centrar a docência no estudante.
  5. Criar uma carreira para profissionais de interface à ciência, profissionalizando esta área e reconhecendo-a como uma área de negócio, e não meramente administrativa.
  6. Garantir que as unidades de investigação FCT têm massa crítica para poderem competir a nível internacional.
  7. Fomentar que as IES portuguesas subam nos rankings internacionais.
  8. Fomentar a mobilidade entre investigadores, particularmente após o doutoramento para reduzir o nível de endogamia nas IES portuguesas.

B. Racional

  1. Atualmente, nas IES, as carreiras docentes são governadas por dois estatutos: o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) e o Estatuto da carreira do pessoal docente do ensino superior politécnico (ECPDESP). Há ainda o Estatuto da Carreira de Investigação Científica.
  2. O ECDU estabelece proporções entre categorias de docentes, o que é um limite ao reconhecimento de mérito.
  3. Não faz sentido haver diferença entre docentes que estão a 100%, e docentes que estão exclusivamente a 100%.
  4. Porém, faz sentido fazer uma distinção relativamente a docentes de uma IES que dão aulas exatamente na mesma área numa IES concorrente (tal nunca seria admitido por uma empresa).
  5. À exceção dos Cursos Técnicos Superiores Profissionais (CTeSP), a oferta formativa (em termos de concessão de grau) destas instituições é similar (o Ensino Superior Politécnico pode, atualmente, conceder o grau de doutoramento em determinadas circunstâncias).
  6. Os estatutos têm diversas diferenças, entre as quais:
    a) no número de horas que os docentes têm de ministrar;
    b) a valorização da agregação (que não é atualmente valorizada salarialmente no caso dos professores adjuntos Politécnicos).
  7. Porém, a atribuição de funções é (docência, investigação e administração), em ambos os casos, similar.
  8. Sabe-se ainda que, nos rankings internacionais, há uma preponderância da valorização da investigação científica, pelo que ficará melhor colocada uma IES que produza artigos, patentes e artigos citados.
  9. Por outro lado, os h-index, a competitividade para atracão de financiamentos, e ainda mais de financiamentos de excelência (como as ERC), significa que a investigação está cada vez mais competitiva, não se coadunando com o ensino de unidades curriculares que frequentemente não têm nada ver, pela sua natureza de base, com a área de investigação. Por seu lado, os regulamentos, exigências de investigação em consórcio, absorvem tempo e exigem competências de negociação, intermediação e visão societal que os investigadores podem não ter. A gestão de projeto é, também, cada vez mais complexa.
  10. Acresce que a pedagogia está em rápida evolução, com novos métodos como flipped classroom, MOOC, horários pós-laboral, etc.
  11. Os estudantes não se sentem no centro da universidade, local de ensino por excelência.
  12. A progressão na carreira docente está centrada na investigação, e não na docência.
  13. A avaliação dos docentes é feita por processos de avaliação internos e automáticos, com critérios determinados pelos próprios, não envolvendo os alunos nem outras formas de avaliação15
  14. Dado que a carreira de investigação científica, apesar de existente, é muito menor do que a carreira docente16, a tendência é que as pessoas procurem uma posição de docência, mesmo quando não querem ser docentes.
  15. Os desafios da gestão são cada vez maiores, exigindo gestores profissionais, e não professores que vão dar o seu contributo para a gestão da IES.
  16. Simultaneamente, a sociedade exige compreender a investigação (comunicação de ciência) e que a investigação possa ter impacto e retorno societal. O impacto e a adoção dos resultados pela sociedade passam pelo estabelecimento de parcerias com a indústria, e não pelo mero depósito de artigos, software ou dados em repositórios abertos – pois não há qualquer garantia que alguém pegue neles e efetivamente os use.
  17. Acresce ainda que os estudantes exigem uma perspetiva prática, que frequentemente está ausente e que apenas é colmatada pela existência de docentes convidados, com experiência na indústria.
  18. O perfil dos estudantes do Ensino Superior também irá mudar progressivamente, com estudantes que querem voltar a estudar enquanto trabalham (e procuram cursos em regime parcial e compatíveis com horários de trabalho, online/blended), o que coloca desafios ao corpo docente atualmente existente.
  19. Note-se ainda que há muitos docentes nas IES que não estão enquadrados em nenhuma unidade de investigação FCT. Tal não os inibe de concorrer a projetos, mas claramente não há efeitos de massa crítica.
  20. Os docentes, ao abrigo da liberdade académica do ECDU, nas suas atividades de investigação, podem também realizá-las enquadrados em unidades FCT que não a IES a que pertencem – por exemplo, um instituto de investigação na esfera de influência da IES, ou mesmo uma unidade FCT de outra IES. Isto significa que, para muitas IES, não há compensação pela alocação do tempo de investigação do seu docente pela outra IES. A gestão dos resultados de investigação não está, frequentemente, regulada.
  21. Atualmente, há bolseiros de investigação e bolseiros de doutoramento, sendo que muitos bolseiros de investigação são também estudantes de doutoramento, que são financiados de projeto em projeto durante o tempo que fazem o doutoramento. Esta situação deverá, tendencialmente, passar para uma situação de contrato de trabalho (à semelhança do sistema holandês), desde logo pela discriminação existente no tratamento da Banca (ex: acesso ao crédito à habitação, cartão de crédito), e porque, no enquadramento do Código do Trabalho, é possível contratar a termo ou a termo incerto. Frequentemente, estes investigadores estão a colmatar necessidades de investigação permanentes (a prova disso é a sua contratação no financiamento plurianual das unidades de investigação FCT).
  22. À semelhança do sistema inglês, defende-se a existência de duas carreiras separadas – uma para docentes, uma para investigadores, que efetivamente funcionem de forma distinta e com avaliação distinta. Devem ainda prever-se a existência de carreiras de profissionais de interface à ciência (comunicação de ciência e transferência de conhecimento), bem como a existência de uma carreira de administração de IES (à semelhança da existência da carreira de administração hospitalar).

(15) Ver https://www.publico.pt/2019/06/02/sociedade/noticia/metade-professores-superior-avaliacao-excelente-1874993. Apenas 5% têm negativa e mais de metade é excelente.
(16) Vide Gráfico 39 em http://www.dgeec.mec.pt/np4/206/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=11&fileName=IPCTN17_Destaques_Resultados_Setor

C. Proposta

  1. Os contratados (docentes, técnicos, investigadores) das IES não devem ser funcionários públicos, mas sim funcionários da IES contratados ao abrigo de direito privado, aumentando a concorrência entre IES pelo talento, através da oferta de condições diferentes de trabalho (salários, contratos, prémios, progressões, etc.). Tal já acontece hoje nas universidades em regime de fundação, e poderá ser uma progressão gradual. Isto significa que os atuais Estatutos de Carreira ficarão tendencialmente obsoletos.
  2. As IES devem ter regulamentos de carreira para docentes, técnicos administrativos, investigadores e profissionais de interface à ciência, que prevejam as regras de admissão e de progressão (dentro de um enquadramento nacional lato de categorias17, que poderá ser baseado no atualmente existente para docentes e investigadores)
  3. Devem ainda ser fixados objetivos de avaliação concretos, tendo em consideração o enquadramento regional/nacional da IES (contributo para o ecossistema), bem como a competitividade a nível internacional (rankings). Estes processos de avaliação poderão ser geridos por comissões departamentais, e deverão ter componentes quantitativas e qualitativas, recorrer a colegas de universidades estrangeiras para pareceres sobre o trabalho desenvolvido, e ter em consideração inquéritos aos estudantes.
  4. Os docentes devem ter carga letiva superior a 9 horas por semana (atual carga letiva prevista no ECDU), de modo a que a sua principal atividade seja a atividade letiva (preparação de aulas, leccionamento das aulas, avaliação de estudantes, mentoria). Deverão ainda participar em atividades de avaliação de pares tendo em vista controlo de qualidade (segundas correções cegas de exames de colegas, validação de exames, processos de acreditação e avaliação de cursos pela A3ES, etc.), podendo também participar em atividades de extensão da IES (por exemplo, de atração de estudantes). Caso desejem, em 10% do seu tempo, poderão contribuir para atividades de investigação.
  5. Os investigadores devem ter carga letiva tendencialmente nula ou até 10% do seu tempo em carga letiva. Isto permitirá lecionar Seminários, bem como unidades curriculares que pretendam introduzir os alunos a projetos de investigação. A principal dedicação dos investigadores deve ser a fazer investigação, sendo avaliados pela sua produção científica e participação em atividades da terceira missão das IES17.
    Entende-se por isto as actuais categorias de Professor Auxiliar, Associado e Catedrático, bem como as categorias correspondentes de Investigadores, incluindo a categoria de Investigador Júnior.
  6. Os profissionais de interface à ciência deverão ser reconhecidos como tal, e não enquadrados em concursos de investigação como frequentemente acontece. O trabalho destes profissionais pode ser enquadrado em:
    1. Transferência de conhecimento – tendo em vista a utilização do conhecimento gerado nas universidades, com fim de impacto social e de geração de receitas, o que se faz através de apoio a spin-offs, licenciamento de direitos sobre resultados, investigação por contrato ou em colaboração com a indústria, e consultoria (venda do tempo dos investigadores);
    2. Pre-award: angariação de financiamento através da constituição de consórcios e escrita de projetos científicos para submissão a calls nacionais e internacionais;
    3. Comunicação de ciência: tendo em vista a disseminação de conhecimento científico
  7. Estes perfis diversos indicados no ponto anterior abarcam formações de ciência, negócios, comunicação, que exigem uma horizontalidade muito grande, pelo que poderão não ter de ser, necessariamente, doutorados. Este trabalho não é mero trabalho administrativo, pelo que não deve ser enquadrado numa carreira de técnico superior como as atualmente existentes.
  8. Todos os investigadores contratados pelas IES têm de estar integrados em unidades FCT da IES a que pertencem. As unidades FCT, para assim serem consideradas e concorrerem a financiamento plurianual, têm de ter um limiar mínimo de investigadores acima do atualmente existente, de modo a garantir a existência de massa crítica de investigadores. Este número deve ser determinado com base num estudo de benchmarking a nível internacional.
  9. As instituições de investigação que não IES (p. ex.: laboratórios associados) devem também adotar regulamentos de carreira para os seus contratados.
  10. Os estudantes de doutoramento deverão deixar de ser bolseiros, e sim contratados pela IES ou pelo instituto de investigação onde realizam a sua investigação (instituição de acolhimento), enquanto assistentes de investigação. O financiamento passará a cobrir os custos de um contrato de trabalho a termo incerto (com a duração máxima do doutoramento, ciclo que deverá ser realizado em 4 anos) com um valor base definido, que a IES poderá aumentar recorrendo a meios financeiros próprios. As propinas poderão ser pagas através de um empréstimo (ver Proposta de financiamento dos estudantes do Ensino Superior), bem como por atividades letivas e técnicas (por exemplo: preparação de aulas práticas, preparação de material/reagentes de laboratório, atividades de consultoria realizadas no âmbito da IES, etc.) até ao máximo de 10% do seu tempo de trabalho. De modo a garantir que existem meios materiais suficientes para a execução do plano de trabalhos proposto, em áreas com maiores exigências financeiras, a IES/instituição de acolhimento deverá comprovar que esses meios existem, nomeadamente através do enquadramento do plano de trabalhos do estudante em projetos financiados ou de financiamento plurianual.
  11. Após realização do doutoramento, o novo doutor não pode concorrer por 2 anos a posições de investigação na IES/instituto de investigação em que esteve contratado.
  12. Nos níveis mais elevados de administração e gestão das IES, prevemos a existência de profissionais de gestão académica, e não reitores ou presidentes eleitos por elementos das IES como hoje temos (ver proposta de governo das IES).

(17) Entende-se por isto as actuais categorias de Professor Auxiliar, Associado e Catedrático, bem como as categorias correspondentes de Investigadores, incluindo a categoria de Investigador Júnior.

D. Questões Frequentes

Um docente que faça investigação não é melhor docente que um que não faça?

Não há nada que indique nesse sentido, nem no contrário. O leccionamento de aulas, a preparação de materiais letivos, o controlo de qualidade sobre pares é um trabalho a tempo integral, que não é compatível com a realização de investigação para progressão na carreira. Atualmente, para se ser competitivo, é necessário ter um corpo dedicado a essa investigação, e garantir que as pessoas que fazem investigação têm uma perspetiva de carreira (que não é necessariamente uma perspetiva de emprego).

Concorrência entre entidades

A existência de carreiras diferentes segundo IES é legítima, tendo em consideração a visão/missão da IES, bem como o seu enquadramento regional/nacional/internacional. As carreiras podem ser reguladas a nível da IES tendo em consideração um enquadramento geral nacional.

Acabar com bolseiros vai aumentar os custos?

Depende dos valores que forem pagos. O que atualmente acontece é que o valor estipulado é suficiente para determinadas áreas, onde há excesso de oferta de mão- de-obra, e insuficiente noutras. Assim, ao existir um contrato de trabalho, está automaticamente definido um valor mínimo, tendo a entidade empregadora total liberdade de estipular o valor, aumentando a liberdade das IES.  Por outro lado, os bolseiros são sujeitos, pela sua condição de bolseiros, a discriminação no acesso ao crédito pela banca, pois o montante da bolsa não é considerado como sendo um rendimento permanente (mesmo que a bolsa seja por 4 anos).
A necessidade de comprovação da existência de meios materiais para a execução do plano de trabalhos proposto é mais relevante quando o trabalho experimental exige laboratórios e consumíveis/reagentes (química, biologia, farmácia, etc.). Frequentemente, o que acontece é que as pessoas estão a ser pagas para trabalhar, mas não têm reagentes/consumíveis, pois a bolsa dada ao estudante não garante a existência de meios. Esta situação é perversa, porque o Estado paga, mas a pessoa não está a trabalhar.