A melhor maneira de comemorar o aniversário do SNS seria repensar a filosofia de dar tudo a todos e apostar em alargar a prestação. Ou seja, a liberdade de acesso, a todos, através da racionalização dos sistemas de saúde.
Comemoram-se este ano 40 anos do Serviço Nacional de Saúde. O Governo já divulgou a intenção de organizar um grande evento no Coliseu, por coincidência, cerca de um mês antes das eleições.
A ideologia subjacente ao Serviço Nacional de Saúde foi copiada do NHS (National Health Service) e é a de garantir uma cobertura universal geral e tendencialmente gratuita. Por outras palavras, dar tudo a todos, ou apenas com uma taxa moderadora simbólica. Infelizmente as boas intenções dos socialistas acarretam na prática “consequências não intencionais” – aquilo a que os anglo-saxónicos chamam unintended consequences – e, numa área tão sensível como a da saúde, estas consequências, para além de fazerem descarrilar o Orçamento do Estado, podem ser fatais.
Um exemplo concreto e bem estudado é a toma em excesso de medicamentos, a chamada polimedicação (definida como a toma de cinco ou mais medicamentos em simultâneo), aquilo que denomino como a “doença do saco”. A semana passada, por exemplo, um doente entrou no meu consultório e antes que eu iniciasse a história clínica despejou um saco com 21 medicamentos. Contei 18 medicamentos diferentes e três repetidos, com nomes diferentes, mas com o mesmo princípio ativo. Após a observação, verifiquei que este doente não só tomava medicamentos desnecessários, como também comprou medicamentos com indicação de vizinhos, e utilizava ainda três medicamentos semelhantes (dose tripla da mesma medicação). A “doença do saco” é uma medicação intempestiva que afeta sobretudo a população sénior.
Quais as razões que estão na origem da polimedicação? Desde logo, o facto de o mesmo doente consultar vários especialistas em simultâneo, consultas demasiado rápidas para uma análise detalhada e ainda a omissão, por parte dos utentes, de alguns dos medicamentos que utilizam. Juntam-se ainda, por vezes, os produtos ditos naturais, mas cujas substâncias ativas interagem com os restantes químicos.
Este excesso que é também fruto da política descontrolada de dar tudo a todos traduz-se em resultados que são o oposto do que se pretende de um sistema de saúde. Em vez de a promover, estas políticas prejudicam a saúde com graves consequências para o Orçamento do Estado e, não menos importante, para o meio ambiente. Prejudicam a saúde porque as reações adversas aos medicamentos e as interações medicamentosas são responsáveis por cerca de 28% de todas as idas a serviços de urgência. Em termos orçamentais, estas complicações têm custos exorbitantes e clamam por medidas de racionalização, que neste caso têm o “condão mágico” de melhorar a saúde e diminuir os gastos.
Por fim, o consumo exagerado e desnecessário de medicamentos contamina o meio ambiente através da excreção de produtos incompletamente metabolizados pela urina para as águas dos rios e, consequentemente, para as águas de consumo. Estudos internacionais apuraram a existência de cerca de 56 drogas diferentes nas águas de consumo, cujo risco está pouco avaliado.
A otimização da medicação merece várias medidas, desde logo, e entre elas, a consciencialização da comunidade, não só em Portugal, mas também no espaço europeu, onde o problema existe. Os doentes e seus familiares têm de ser alertados e os profissionais de saúde devem ter disponibilidade para atender cada caso de forma personalizada. Ainda a montante, a formação de técnicos com conhecimentos específicos nesta matéria, consultores farmacêuticos que atuem junto das populações e das clínicas e centros de saúde ajudariam a disciplinar as tomas. A criação de um portal europeu do medicamento seria de enorme utilidade. O problema é de todos nós, cidadãos, e vai passar para os nossos filhos e netos com consequências a vários níveis.
A melhor maneira de comemorar o aniversário do Serviço Nacional de Saúde, na minha opinião, seria repensar a filosofia de dar tudo a todos e apostar em alargar a prestação. Ou seja, a liberdade de acesso, a todos, através da racionalização dos sistemas de saúde.
PÚBLICO, 25 de Abril de 2019