O grande perigo da liberdade é favorecer os fortes. Por isso uma sociedade verdadeiramente livre impõe uma estrutura legal sólida e justa que proteja a autonomia dos que necessitam.
Assim começou a crónica de João César das Neves (JCN), criticando os liberais clássicos por se esquecerem dos mais vulneráveis. Não deixa de ser irónico o elogio ao princípio da autonomia quando no restante texto JCN acaba por reduzir o mesmo a um papel secundário.
Para JCN, o direito a um indivíduo determinar o seu destino deve ser feito segundo a sua própria ideologia. Diria mais, mitologia. Nova ironia é o seu lapso na mitologia quando refere que é o Homem-Aranha a dizer “com grande poder, vem grande responsabilidade”. Na verdade, é o seu tio, Ben Parker, assassinado posteriormente como externalidade da inação de Peter (leia-se Homem-Aranha) aquando de um assalto.
Surpreende-me sim, JCN, uma figura quase mitológica do conservadorismo em Portugal, ter a necessidade de vir ditar o que deve ser um liberal. Porventura o problema foi a apropriação desse nome por um conservadorismo que não via problema algum na falta de regulação ou em falta de oportunidades económicas, mas achava por bem ditar a forma como outros viviam ou morriam.
As propostas em cima da mesa sobre morte assistida capacitam o indivíduo no seu princípio de autonomia. É ele que escolhe e é ele que determina o seu destino. Após declaração reiterada de vontade, após passar por avaliação clínica para excluir patologia psiquiátrica tratável se indicado, após a verificação se os cuidados paliativos até então são adequados.
Quando fala em sofrimento e injustiça, não lhe faz a mínima impressão que vidas terminem de forma violenta porque se vêem sem alternativa, sem acesso a soluções em que se possam despedir condignamente da família, sem subterfúgios e sem fugir para o estrangeiro (como já é possível) para o cumprimento da sua vontade.
Na verdade, JCN embarca na mesma consequência da retórica que alguns usaram para a IVG: quem tinha possibilidades ia a Espanha, quem não tinha levava a cabo a sua vontade em vão-de-escada ou clínicas clandestinas. Afinal o que é que isso interessa? Afinal, o que importa é o cumprimento dos ditames da mitologia. Posteriormente, afunila a deontologia médica, dirigindo-a para o primado da defesa absoluta da vida, esquecendo os princípios da autonomia e beneficência. Por que não perguntar aos doentes terminais, com os quais se genuinamente preocupa, o que eles pretendem? Afinal não podem eles determinar, em consciência, que não querem passar por um processo evitável de sofrimento? São vulneráveis mas o Estado, no entendimento de JCN, deve-lhes negar a voz.
JCN e outros devem entender que existe um segmento da população que não se reconhece neste paternalismo omnipresente de forma transversal. Que acredita, mais do que nunca, no racionalismo, na ciência, no humanismo ditado por um balanço entre liberdade individual e bem comum. Esse segmento não voltará a ficar condenado a um voto em branco entre soluções que vejam o Estado como primeira e última solução ou que, por outro lado, defendam uma sociedade em a regulação é mínima ou inexistente excepto na forma como as pessoas vivem as suas vidas.
Existe um novo espaço chamado Iniciativa Liberal. Alheio a propostas em que sejam dadas ecografias a assinar antes de uma IVG, alheio a ambientes em que ainda persistem traços da propriedade alheia do útero e da vida da mulher, alheio à abordagem hipócrita das dependências em que a solução (errada) é o castigo e a criminalização. Por outro lado, devemos em última análise, salvaguardar o valor da iniciativa individual e do seu valor inalienável. Portanto, proponho-lhe a fundação do Partido Conservador ou do Partido Democrata-Cristão. No bom espírito do saudoso Ben Parker, poderá fazer com que se clarifiquem as opções no boletim de voto e fazer jus à responsabilidade que possa e queira assumir. Independentemente da opção, certamente me permitirá citar uma figura quase mitológica da nossa cultura, desejando-lhe, sincera e exactamente, o que ele expressou: “Façam o favor de ser felizes”.
— Bernardo Gomes, médico e membro da Iniciativa Liberal